Reforma política é tema de artigo do secretário-geral da OAB
Brasília – Confira o artigo
“Transparência e opacidade do sistema eleitoral: subsídios para a
reforma política democrática”, de autoria do secretário–geral da OAB
Nacional, Claudio Pereira de Souza Neto, sobre reforma política,
publicado nesta terça-feira (25) no portal jurídico Jota.
Transparência e opacidade do sistema eleitoral: subsídios para a reforma política democrática
Por Cláudio Pereira de Souza Neto
As eleições encerradas há poucas semanas novamente demonstraram a
urgente necessidade de que se realize a reforma política. Problemas de
diferentes tipos se repetiram. Neste breve texto, examina-se uma grave
incongruência de nosso sistema: a opacidade decorrente da transferência
de votos na eleição para deputados. O voto dado a um candidato serve
para eleger candidatos que, muitas vezes, o eleitor sequer conhece. O
problema se agrava com a transferência de votos no âmbito mais amplo das
coligações partidárias – de acordo com as regras atuais, o voto dado ao
candidato de um partido pode servir para eleger candidatos dos demais
partidos coligados, os quais, não raro, professam ideias e valores
antagônicos.
A transferência de
votos entre candidatos de diferentes legendas partidárias é não só
inconveniente, mas também inconstitucional: a opacidade do sistema chega
a níveis incompatíveis com o princípio republicano (artigo 1º da
Constituição Federal). E mais: a transferência de votos entre diferentes
partidos viola o próprio princípio daproporcionalidade da representação
popular (artigo 45 da Constituição Federal): o artifício da
transferência impede que a proporcionalidade de orientações ideológicas
que têm lugar na sociedade se reproduza no Parlamento. Como as
coligações partidárias no Brasil são muitas vezes incoerentes, não é
incomum que candidatos com valores absolutamente antagônicos se reúnam
sob a mesma coligação, e que os votos dados para eleger um sirvam para
eleger o outro.
O problema, pelo
menos em parte, comportaria solução judicial: a transferência de votos
entre partidos que integram coligações para eleições proporcionais viola
a Constituição Federal – e essa inconstitucionalidade poderia ser
suscitada perante o STF por meio de ação direta. Porém, o Congresso
Nacional tem hoje uma alternativa consistente para pôr fim a essa grave
disfunção do sistema eleitoral brasileiro. Trata-se de proposta de “voto
transparente”, apresentada pela Coalizão pela Reforma Política
Democrática e Eleições Limpas, que é integrada por mais de 100 entidades
representativas da sociedade civil, dentre as quais a OAB, a CNBB e o
Movimento pelo Combate a Corrupção Eleitoral. Antes de apresentá-la,
examinemos os aspectos centrais do problema.
A Constituição Federal de 1988 determina que os deputados federais
serão eleitos por meio do sistema proporcional (art. 45). Esse sistema
tem como objetivo permitir que o pluralismo ideológico verificado na
sociedade se reproduza proporcionalmente na casa parlamentar. De modo
ideal, o sistema proporcional deve permitir que o Parlamento seja um
espelho da sociedade. Se, na sociedade, há 10% de ambientalistas, o
parlamento deve possuir, tendencialmente, 10% de deputados que
representem essa doutrina.
O sistema
permite que, nada obstante a vontade majoritária prevaleça nas
deliberações parlamentares, as minorias também possam ser representadas.
Ainda que derrotadas nas votações, as minorias cobram do bloco
majoritário a prestação de contas, criticam a orientação predominante na
casa legislativa e, por meio de sua crítica, estimulam a própria
maioria a aprimorar suas práticas políticas e administrativas. Trata-se
de forma de organizar o Parlamento especialmente concebida para
sociedades plurais, em que cidadãos adeptos de diferentes orientações
ideológicas convivem, disputam e cooperam.
Na legislação eleitoral brasileira hoje em vigor, o estabelecimento da
representação proporcional se dá por meio da transferência de votos.
Para se verificar a representatividade de cada partido político,
somam-se os votos dados a cada um dos candidatos do partido e os votos
dados à legenda partidária. Apura-se, então, a proporção dos cidadãos
que é representada pelo partido. O partido terá direito a mesma
proporção de cadeiras na casa parlamentar. Os candidatos escolhidos
serão os mais votados. Ainda que tenha obtido poucos votos, o candidato
pode se eleger: basta que lhe sejam transferidos os votos dados aos
demais candidatos do partido, bem como à legenda partidária. Na
legislatura eleita em 2014, apenas 36 Deputados Federais foram eleitos
com votos próprios: os demais 477 foram eleitos também com votos dados a
outros candidatos e à legenda partidária.
Essa possibilidade da transferência de votos tem provocado múltiplos
problemas. Um dos mais relevantes é tornar o sistema opaco. O problema
se agrava em razão da possibilidade da coligação proporcional.
Considere-se um exemplo: o PT, em determinado estado, pode estar
coligado com o PRB – isso ocorreu nas últimas eleições em Minas Gerais. O
PT possui em seus quadros candidatos comprometidos com bandeiras
feministas, como é a defesa da descriminalização do aborto. Já o PRB é
integrado por muitos pastores evangélicos, contrários à referida
descriminalização. No sistema atual, o voto dado a um pastor evangélico
pode servir para eleger candidata feminista, e vice-versa.
É certo que a Constituição Federal permite as coligações. A norma está
inscrita em seu art. 17, § 1º. O princípio da autonomia das coligações
partidárias tem que ser interpretado, porém, em conformidade com os
princípios republicano e da proporcionalidade da representação popular. A
coligação partidária pode ser feita regularmente nas eleições
majoritárias. Não pode servir, no entanto, para legitimar a
transferência de votos entre diferentes legendas no âmbito das
coligações proporcionais.
II
Há soluções judiciais que poderiam ser concebidas para enfrentar
especificamente o problema da transferência de votos nas coligações
proporcionais. No entanto, melhor seria que o próprio sistema de
transferência de votos fosse superado, para o que se exige atuação
legislativa – salvo melhor juízo, não há propriamente
inconstitucionalidade quando a transferência opera apenas no interior
dos partidos. A proposta denominada “voto transparente” busca reduzir a
opacidade do sistema e os custos das eleições, sem deixar de conferir
aos eleitores a última palavra sobre os candidatos. A proposta é
simples. Decompõe em dois momentos as funções exercidas atualmente pelo
voto:
1. No primeiro turno, o
eleitor vota no partido. Apura-se qual a proporção do eleitorado que
prefere determinado partido. Na mesma proporção, o partido ocupará
cadeiras no parlamento. Nesse primeiro momento, o sistema se assemelha
ao sistema proporcional com lista fechada. Por essa razão, os defensores
desse sistema têm boas razões para considerar aceitável a proposta de
“voto transparente”.
2. No segundo
turno, o eleitor vota no candidato. Cada partido tem direito de
apresentar um número de candidaturas que corresponda ao dobro das vagas
que conquistou na primeira votação. Nesse segundo momento, o sistema se
assemelha ao majoritário: são eleitos os candidatos mais votados. Não
são as elites partidárias que definem o resultado final. É o povo que
decide diretamente. Os defensores do sistema majoritário, embora,
idealmente, possam preferir a superação global do sistema atual, têm
boas razões para conceber a proposta como um aperfeiçoamento
significativo.
A principal virtude
do sistema proposto repousa na transparência – por isso, a adoção do
nome “voto transparente”. As duas funções do voto para deputado são
decompostas e expostas à luz. No sistema atual, o eleitor, na verdade,
tem pouquíssimo controle sobre os candidatos que são efetivamente
eleitos. A proposta de Reforma Política Democrática, por meio do voto
transparente, busca enfrentar esse problema.
A proposta tende ainda a reduzir de modo muito significativo os custos
das campanhas eleitorais. No sistema atual, cada candidato possui seu
próprio caixa de campanha e realiza sua própria captação de recursos. O
sistema é caríssimo, e não é passível de ser fiscalizado com eficiência.
No modelo proposto, há a redução em 75% do número de candidaturas
individuais e, portanto, de caixas de campanha. O sistema político passa
a ser menos dependente do sistema econômico, e a corrupção, decorrente a
imbricação ilegítima entre política, administração e empresas, tende a
diminuir de modo muito significativo.
A proposta também tem a virtude de não depender de qualquer alteração
no texto constitucional. O sistema é proporcional, como exigido pela
Constituição (art. 45). Não há razão para se cogitar, portanto, de
“constituinte exclusiva” ou de emenda constitucional. A alteração da
Constituição seria necessária, por exemplo, para que se adotasse o
sistema distrital, puro ou misto. Como importantes agremiações
partidárias são contra esse sistema, insistir em sua adoção como única
alternativa tende a levar à paralisia, considerando a especial
dificuldade de se aprovarem emendas à Constituição.
III
A proposta de voto transparente agrega, de modo simples e coerente,
elementos do sistema proporcional de lista fechada e do sistema
majoritário. Por isso, ainda que não seja a primeira opção dos que
defendem um ou outro modelo, tem a vocação para prover as bases para o
consenso em torno não do que é ideal, mas do que é possível. O projeto
de Reforma Política Democrática não pretende ser nem do governo, nem da
oposição. Será apresentado como projeto de lei de iniciativa popular,
apoiado em mais de 1,5 milhão de assinaturas: será o projeto de reforma
política da cidadania brasileira.
* Advogado. Secretário-Geral da OAB. Professor da Universidade Federal Fluminense.
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