As águas do rio de minha cidade


Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio - Escola Professor José Rodrigues Leite
Não se entra duas vezes no mesmo rio, já diria Heráclito. Mudam-se as águas, mudamos nós. Nessa minha terceira participação na Olimpíada de Língua Portuguesa foram meus alunos do 2.º ano da Escola José Rodrigues Leite, em Rio Branco que, na descoberta do gênero Artigo de Opinião, me deram a maior lição de humanidade que já vivi.
O ano letivo de 2012 começou com uma situação contrastante. Eu estava ansiosa para iniciar as oficinas, mas a ocorrência da maior alagação já enfrentada por nós, acreanos, preocupava. O transbordamento do rio Acre deixou cerca de 130.000 pessoas desabrigadas, muitos mortos, e afetou gravemente nosso cotidiano. Imagine 25% de seu estado debaixo d’água! Do alto de nossa escola, no centro de Rio Branco, dava para ver as águas tomando conta da cidade, inundando nosso centro histórico.
As oficinas começaram quando saímos do estado de calamidade pública. Apresentei alguns vídeos disponíveis na Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro. Entre eles, chamaram a atenção o de lançamento da 3ª edição da Olimpíada e o da Semifinal de Artigo de Opinião de 2010.
“Como achar algo interessante para falar em meio a tanta calamidade?”, questionavam meus alunos. Se a realidade parecia áspera, eles me davam uma lição de desapego. Enquanto as aulas estavam suspensas, mesmo afetados pela enchente, formaram grupos de voluntários para ajudar os desabrigados. O quartel-general foi a própria escola. Ao mesmo tempo em que se preocupavam com a comunidade, trouxeram para o debate da sala de aula a situação dos imigrantes haitianos que entravam no Brasil tendo o Acre como rota. Simultaneamente à nossa maior catástrofe natural, os haitianos buscavam dias melhores, após o caos instaurado no país com o terremoto de 7 graus na Escala Richter, ocorrido em 2010.
Voltando os olhos para meus alunos, observei maior interesse pelos debates das questões polêmicas a partir de vídeos, músicas e do jogo Q.P. Brasil. Assim, elaborei uma apostila de apoio, com textos do Caderno do Professor e atividades que iam sendo respondidas e discutidas ao longo das aulas. Discutimos questões como diversidade cultural, preconceito, xenofobia e a permanência ou não dos haitianos no Acre. Após algumas aulas de preparação, começamos as rodadas de debates. Creio que inventamos um novo gênero: o debjúri, um misto de debate regrado com júri simulado. De início, preocupei-me, pois havia um tom muito acirrado entre os alunos. Porém, logo descobri que estavam estendendo o debate para além da sala de aula; discutiam o tema pelos corredores, escadarias, queriam
defender suas ideias a qualquer custo. Percebi que essa atividade tinha trazido à tona discussões muito mais importantes.
Aos poucos, foram chegando várias propostas de temas para o artigo: a alagação de 2012, os problemas de mobilidade em Rio Branco, a construção da usina Álcool Verde. Deixei-os livres para que escolhessem e, ao final, a maioria decidiu escrever sobre a imigração em massa de milhares de haitianos para o Brasil, tendo como porta de chegada o Acre.
Nas falas, notei um refinado senso de solidariedade e preocupação com as questões do lugar onde vivem. Os textos foram mostrando que, mais do que achar respostas prontas e acabadas, eles tinham muitos questionamentos, como se percebe na argumentação de Kellysson Felipe: O Acre, sendo ainda um Estado em desenvolvimento, deve continuar recebendo os imigrantes haitianos? Que consequências teríamos ao abraçar mais uma cultura?
Outros, porém, recorreram ao tom de denúncia, como a aluna Náttaly de Almeida: É evidente que um país onde anualmente são desviados dez bilhões de reais teria condições de ajudar outro que se encontra em crise extrema.
A conclusão a que chega o aluno Paulo Renan Figueiredo, semifinalista de 2012 sintetiza bem essa preocupação com os valores humanitários e o respeito às diferenças culturais: Diante da singular situação que se apresenta, penso que acolher os estrangeiros é a atitude mais coerente (...) Assim, veremos um país devastado pelo terremoto se reerguer. Aceitando-os, poderíamos trocar uma atitude xenofóbica por um ato de solidariedade humana.
Na primeira escrita, percebi que os textos se assemelhavam muito a redações do ENEM, então, chamei os alunos no quadro para fazermos a distinção entre as duas situações de produção.
No início de julho, minha filhinha nasceu. Era hora de sair de cena, mas recompensada: tinha ensinado e aprendido como nunca! Nesse momento, foi imprescindível o auxílio de meu esposo Reginâmio Bonifácio de Lima. Mestre em Letras, ele é escritor especialista em Memória e ministrou palestras em todas as minhas participações na Olimpíada. Ninguém melhor para estabelecer a comunicação entre tantos interessados: gestão, coordenadores, alunos, família; de repente, todos envolvidos para finalizar o trabalho.
Enquanto via minha filha em suas primeiras impressões do mundo, acompanhava de longe meus escritores. Convoquei os autores dos dez melhores textos de cada sala, estendendo o convite a todos os interessados em participar dessa oficina final.
Quando, com minha filhinha no colo, entrei no auditório lotado, me emocionei ao ver a festa que meus alunos fizeram. Relembrei que ser professor é acalentar sonhos, realizar desejos, mostrar caminhos. Aprimoramos os textos e concluímos a orientação da reescrita por
e-mail. Selecionamos os melhores e enviamos à Comissão Escolar. O texto escolhido foi O Haiti é aqui, de Paulo Renan de Souza Figueiredo. Acompanhamos numa intensa torcida o resultado das Comissões Julgadoras Municipal e Estadual. A notícia de que nosso aluno era semifinalista causou euforia. A argumentação de Paulo sintetiza tudo o que acreanos e haitianos viveram nesses últimos meses: calamidade, solidariedade, superação.
Nossas oficinas acabaram realmente valendo a pena. É um pouco desse sentimento de recompensa pelo trabalho duro que fica com o passar das águas. Trago, gravados na memória, os sorrisos, os olhares desafiadores, a certeza de ter estabelecido com meus alunos uma relação construída com base no companheirismo, no desejo de superação, nos erros e acertos que ousei cometer. Tenho, ao final dessa jornada, a certeza de que estamos sempre a nos reconstruir, como aquela água que passa bem ali, no rio de minha aldeia, meu rio Acre, debruçando-se além da curva para escrever o futuro além do infinito.

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